Como via de primeira escolha em composição alternativa de conflitos na seara do Direito Médico ao redor do mundo, a arbitragem proporciona aos contratantes a garantia que seus eventuais litígios sejam solucionados por pessoas (árbitros) com conhecimento na matéria objeto da controvérsia, com sigilo, rapidez e eficiência, de forma que este terceiro imparcial deverá decidir a controvérsia (heterocomposição), por meio de uma sentença arbitral (não se fala mais em laudo arbitral), escrita, que possui a mesma eficácia de uma sentença judicial, podendo, inclusive, ser executada judicialmente, caso a parte vencida não a cumpra de forma voluntária. (ALBUQUERQUE FILHO, 2002).
O instituto da arbitragem (Lei 9.307/96), anteriormente previsto nos arts. 1.037 a 1.048 do Código Civil (como compromisso) e 1.072 a 1.102 do Código de Processo Civil (do juízo arbitral), hoje se faz regido pela Lei 9.307/96 que é mais minuciosa do que o Código Civil no seu art. 1.037 (revogado) e o Código de Processo Civil nos seus arts. 1072 e 1073 (revogados), em relação à definição das pessoas capazes de se valer da arbitragem e a forma pelas quais podem determinar que o ato seja realizado.
A supracitada Lei da Arbitragem assim preceitua em seu artigo 1º, in verbis: “As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.
Portanto, só as questões que versem sobre direitos patrimoniais disponíveis poderão ser objeto da arbitragem, sendo às partes, maiores e capazes, e não se permitindo o juízo arbitral sobre questões de estado e capacidade das pessoas, nem tampouco sobre coisa fora do comércio (art. 1º). Porém, agora poderão pactuar sobre o critério da arbitragem observando-se as regras do direito ou poderá ser utilizada a eqüidade (art. 2º, caput), ou seja, adaptar-se à realidade fática do momento em questão (caso concreto), observando-se a ética e a boa razão. Dentro dessa escolha, não havendo violação dos bons costumes, poderão as partes escolher as regras de direito a serem aplicadas (art. 2º, § 1º) ou determinar que se realize com base nos princípios gerais do direito, usos e costumes e regras internacionais do direito (art. 2º, § 2º). (CARDOSO, 2010).
O que se torna entrave a consolidação da arbitragem como instrumento de composição de conflitos em matéria de direito médico no país, principalmente quanto à responsabilidade civil por erro médico, é justamente a observância do requisito legal do direito em litígio ser patrimonial disponível: direitos morais ou extrapatrimoniais, e os demais indisponíveis, dos quais a pessoa não pode abrir mão, seja pela natureza de inalienabilidade, ou por previsão legal – dentre os quais a saúde – estão excluídos dessa forma de composição. E quando se está diante de um erro que curse com dano estético, afligindo diretamente direito de personalidade, podemos classificar o direito lesado em questão como intransmissível e irrenunciável, impedindo a arbitragem (arts. 11, do CC e 1º, da Lei 9307/96).
Para que se possa entender o quadro legal que ilustra a situação da arbitragem quanto a solução de controvérsias em matéria de responsabilidade médica no Brasil, evidenciaremos a experiência vivenciada pelos Estados Unidos e pela Coréia do Sul, ambos antigos e bem sucedidos empregadores da arbitragem, para que se trace um comparativo e posteriormente se reflita sobre a possibilidade de vivenciarmos realidade semelhante no Brasil.
1· Arbitragem em Disputas por Erro Médico: Estados Unidos
Na realidade americana, quando uma decisão judicial é necessária, a arbitragem é o instrumento ideal para decidir disputas de saúde. Através de um acordo de arbitragem pré-processual, constante nos documentos de admissão hospitalar e contratos, hospitais, médicos e pacientes podem acordar deslocar futuras disputas legais para fora do Judiciário, evitando um processo caro e lento, com a arbitragem como via justa, barata e eficiente, que pode fornecer às partes, com os remédios disponíveis sob a lei, a resolução do conflito de forma satisfatória.
A Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Terminix Allied-Bruce, de 1995, observou os benefícios da arbitragem, em comparação ao litígio judicial, incluindo a menor despesa, regras procedimentais e provas mais simples, menos hostilidade entre as partes, menos rompimento de relações em curso e futuras entre as partes, e horários mais flexíveis de audiências.
Um estudo que analisou o programa Kaiser Permanente’s Healthcare Arbitration Program, que é talvez o maior de seu tipo nos EUA, mostrou que os participantes e seus advogados relataram um elevado grau de confiança tanto no programa quanto nos árbitros.
Desta feita, depreende-se que a forma mais comum e mais eficaz para os profissionais de saúde, fornecedores de planos de saúde e pacientes, para se certificar de que as disputas são arbitradas em vez de litigadas no Judiciário, é acordarem submeter à arbitragem todas as disputas futuras já no início de seu relacionamento, seja através da inclusão um acordo para arbitrar nos próprios documentos de admissão hospitalar quando os pacientes eventualmente buscar atendimento, ou nos documentos de inscrição ao plano de saúde.
Geralmente, o Federal Arbitration Act (FAA) é a lei que rege as disputas em arbitragem. O FAA prevê que uma disputa que se queira submeter à arbitragem, deve existir uma controvérsia válida, irrevogável e executável, fundamentada em lei ou na equidade para a revogação de qualquer contrato. A Suprema Corte dos EUA decidiu que o FAA se aplica a todas as disputas que envolvem o comércio interestadual, por isso, Tribunais ao longo do país têm decidido que as atividades na indústria de cuidados de saúde constituem comércio interestadual e, portanto, praticamente todas as convenções de arbitragem nesta seara estão sujeitas às diretrizes do FAA. (NEVERS, 2000).
Contudo, não se impediu aos estados que criarem sua própria legislação arbitral, logo, alguns estados promulgaram leis e estatutos para reger a arbitragem no campo da saúde, incluindo que estabelecem requisitos específicos para a saúde. O FAA, no entanto, revoga de pronto as leis estaduais que são incompatíveis com suas diretrizes.
Tribunais têm reiteradamente reafirmado o papel da arbitragem em todas as áreas de transações comerciais e de consumo, incluindo cuidados de saúde e cuidados de longo prazo. No caso Madden v. Kaiser Foundation Hospitals, por exemplo, o tribunal obrigou submissão ao juízo arbitral de uma alegação de negligência médica interposta por um servidor do Estado contra um plano de saúde, honrando a convenção de arbitragem celebrada entre o Estado da Califórnia e o fornecedor do plano de saúde.
Já no caso Briarcliff Nursing Home, Inc. v. Turcotte, o Suprema Corte do Alabama reverteu uma decisão de primeira instância e obrigou a submissão à arbitragem, em uma apelação, de duas ações de morte por negligência trazidas pelos herdeiros de ex-residentes de um asilo. Depois de examinar os fatos, o Tribunal considerou que as cláusulas de arbitragem presentes no caso não foram nem injustas, tampouco o contrato foi erroneamente celebrado pelos moradores, devidamente bem informados sobre elas. Esta decisão baseou-se no fato de que a cláusula compromissória em questão era parte do formulário de admissão do asilo.
Por outro lado, um tribunal no Arizona rejeitou no caso Broemmer v. Abortion Services of Phoenix, Ltd. uma sentença arbitral, pois a paciente adolescente não compreendia as condições da cláusula compromissória de arbitragem que ela tinha assinado. Além disso, o centro médico em que ela foi tratada não possuía nenhuma política para garantir a conscientização do paciente.
Conclui-se que a experiência americana quanto ao emprego da arbitragem como primeira instância de composição de conflitos é bem sucedida, ao passo que a própria Suprema Corte preconiza sua priorização em face da submissão do litígio ao Judiciário. A arbitragem provou ser célere, menos dispendiosa e confidencial, características prezadas por ambas as partes em disputa.
2· Arbitragem em Disputas por Erro Médico: Coréia do Sul
Depois de muitas reviravoltas, a Assembléia Nacional da Coréia do Sul finalmente aprovou o Malpractice-related Damage Relief and Medical Dispute Resolution Act em 11 de março de 2011. A nova lei entrou em vigor um ano depois da sua promulgação.
Passaram-se 23 anos desde que um projeto de lei semelhante, versando sobre disputas sobre negligência médica, foi pela primeira vez apresentado à Assembléia em 1988. Esta lei visa assegurar a solução justa, rápida e barata de disputas médicas, com foco na resolução alternativa de litígios (ADR), enquanto que os casos de negligência, tradicionalmente, eram resolvidos principalmente através de processos judiciais em tribunais civis. (DU-HIE, 2011)
Ainda assim, o ato não impede pacientes ou médicos de partirem diretamente para uma ação judicial em um tribunal. O artigo 3 º da referida Lei afirma claramente que este ato se aplica a cidadão internacional ou nacionais em ações de indenização contra a hospitais ou clínicas coreanas por negligência médica.
Seguindo a legislação, a Comissão Coreana de Solução de Controvérsias Médicas (Korean Commission for Settlement of Medical Disputes), um corpo totalmente novo de resolução de litígios, foi criada no primeiro semestre de 2012. Esta comissão, que resolve disputas médicas, seja por mediação ou arbitragem, apresenta um duplo sistema de avaliação jurídica e médica de casos de negligência.
Por um lado, a Comissão de Mediação, que inclui juízes e advogados como seus membros, decide se o médico deve ser considerado legalmente responsável pelos danos sofridos pelo paciente. Por outro lado, a Bancada de Avaliação Médica, de que os médicos e os procuradores nacionais são membros, exercem o seu poder discricionário para investigar a causa do acidente.
A bancada determina se o acidente em questão foi causado por negligência profissional ou não, independentemente da falha do paciente para provar cada elemento de sua reivindicação. Ele analisa registros médicos, questiona pessoas envolvidas no tratamento ou cuidado, reúne elementos necessários e toma outras medidas pertinentes.
Durante as audiências de uma Câmara no Comitê, que preside um caso particular, o membro da bancada encarregado do caso explana diante da câmara, dando o seu parecer sobre o caso. Estes procedimentos inovadores reduzem significativamente o tempo e os gastos de ambos os lados do conflito.
Além disso, a nova comissão opera um Sistema de Garantia de Pagamento de acordo com o ato, em que quando um prestador de serviços médicos deixa de pagar os danos resolvidos por mediação ou arbitragem, ou concedido em uma decisão final por um tribunal, a comissão tem responsabilidade para a compensação do paciente em vez da compensação partir do devedor originário.
A comissão pode posteriormente, em regresso, amortizar os gastos com o provedor responsável pelos danos. Com isso, os pacientes podem ser protegidos mesmo se o serviço médico não for coberto pelo seguro de responsabilidade civil.
Muitos dizem que a chave do sucesso para o novo sistema de resolução de litígios médico foi organizar da melhor forma a comissão, especialmente a Bancada de Avaliação Médica dentro da comissão, a fim de que ela fosse composta por membros de confiança, de pessoal competente e imparcial.
3· Por um Novo Panorama para a Arbitragem em Saúde no Brasil
Da controvérsia doutrinária da possibilidade do cabimento da arbitragem na problemática da responsabilidade civil por erro médico, afirma-se que, embora literalmente a Lei 9.307/96 expresse que só serão objetos de arbitragem direitos disponíveis, por uma interpretação extensiva, partindo da consciência ética e da valoração dos componentes sociais, bem como se buscando o sentido do ordenamento jurídico e não se preocupando com sua estrutura, aquele é apresentado como ferramenta a serviço das causas mais importantes dentro da sociedade pluralista, de modo que se admite, excepcionalmente, buscando atingir um bem maior, de modo implícito, como objeto de arbitragem a saúde, direito por natureza indisponível, dentro do qual se insere as questões advindas da atuação médica (LANA, 2005).
Abandone-se o entendimento restritivo da arbitragem como solução de exceção para composição de conflitos, bem como não se entenda por consolidado seu impedimento, como julgou a 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo na seguinte decisão:
Arbitragem e erro médico – Cláusula compromissária instituída em contrato de prestação de serviços médicos (cirurgia plástica) – Inadmissibilidade, por estabelecer imposição compulsória de arbitragem (art. 51, VII, do CDC) e porque, diante do silêncio sobre a quem cabe arcar com os custos da arbitragem, implica restrição ao direito de pleitear indenização pela falha do serviço no caso de ser dever do paciente, com ofensa aos arts. 14 e 54, § 4o, da Lei 8078/90 – Ademais e por envolver a cirurgia plástica estética direito de personalidade (integridade física) poderá ser classificado como intransmissível e irrenunciável, impedindo a arbitragem (arts. 11, do CC e 1o, da Lei 9307/96)- Não provimento. (990103136519 SP, Relator: Enio Zuliani, Data de Julgamento: 09/09/2010, 4ª Turma Cível, Data de Publicação: 23/09/2010). (grifamos).
Como se demonstrou, nos EUA, nos contratos de adesão aos planos de saúde e nos próprios documentos de admissão hospitalar há a constância da cláusula compromissória arbitral, sobre a qual, pelas políticas de informação dos hospitais, os pacientes são, na maioria das ocasiões, devidamente informados. Estatisticamente se provou que a arbitragem é instrumento de composição de conflitos mais célere, desprende menos despesas e confere maior confidencialidade as contendas, o que garante a imagem do profissional médico e do próprio paciente. Ademais, a idéia de implantação de um órgão estatal maior incumbido de julgar, mediante mediação e arbitragem, as disputas resultantes de responsabilidade civil por erro médico, no Brasil, nos parece plausível, mas não possível ao país nas atuais conjecturas.
4· Conclusão
A legislação arbitral pátria, basicamente composta pela Lei 9.307/96 e pelos usos e costumes internacionais, não é suficiente para sustentar um sistema jurídico completamente novo como o sul-coreano, carecendo de prévia adequação à realidade mundial atual, de forma que passe a compor também disputas como as que versam sobre saúde de modo geral, como já se vê em outros países.
Claro que se deve levar em consideração fatores que evocam o sucesso da arbitragem em saúde nos países citados, como um sistema de saúde completamente privatizado que justifica a priorização do juízo arbitral sobre o jurisdicional nos Estados Unidos; ou mesmo a organização e estruturação de todo um sistema regulador realizado com maestria por um país pequeno e desenvolvido como a Coréia do Sul. Contudo, não se deve olvidar que um país que têm legislações de vanguarda na seara consumeirista e menorista, além de um exemplar sistema eleitoral, mesmo sendo de grande monta, como o Brasil, tem capacidade – e urgente necessidade – tanto para atualizar sua legislação arbitral como para compor um bem sucedido sistema de resolução de conflitos, nos moldes internacionais.
5· Referências
ALBUQUERQUE FILHO, Clóvis Antunes Carneiro de. A arbitragem no Direito brasileiro pela Lei nº 9.307/96. Comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002 . Disponível em aqui. Acesso em: 13 ago. 2012.
CARDOSO, Oscar Valente. Lei de Arbitragem: aspectos gerais. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2452, 19 mar. 2010. Disponível aqui. Acesso em: 21 ago. 2012.
DU-HIE, Han. Breakthrough in medical dispute resolution. Korea Times. Seul, 04 jun 2011.
LANA, Roberto Lauro. Arbitragem na área da saúde – Panorama atual. Revista de Direito Médico e da Saúde, Recife, nº 1: janeiro/março 2005, Edição 1, 2005.
NEVERS, Ann H. Medical Malpractice Arbitration In The New Millennium: Much Ado About Nothing? Pepperdine Dispute Resolution Law Journal. Malibu, CA. Ano 2, n. 2, 2000. Disponível aqui. Acesso em: 10 out 2012.
LIMA, Giácomo Lamarão. Arbitragem em responsabilidade médica. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 dez. 2012. Disponivel aqui.